O rosto azul-anil de Marielle Franco


Isso porque Marielle ainda não havia visto o dia. À noite, se neblina, abrem aos arredores portas de todos os tipos: aveludada, crespa, rígida, lisa e outras. No dia anterior havia andado sozinha, matutando o ódio. Não havia ali, naquele espaço cercado de pau e pedra, nenhum material de proteção revestindo o cercado para que Marielle passasse sem criar feridas, ou rasgos na pele. Circulava no espaço de cabeça alta, na ânsia de encontrar uma saída justa. Demorou três horas até que vieram dar-lhe um aviso: o expediente estaria no fim, bastava as últimas incumbências e novamente se abriria as portas de todos os tipos.
Marielle, impaciente com razão, assentou seu pensamento numa única ideia: seu estado atual não se deve ao seu feito, mas ao seu ter sido. Inquietava-a saber disso, por isso pôs-se a ler até o amanhecer, para depois dele continuar lendo. Não ouvia notícias do lado de fora, deviam estar ausentes, encarregados de algo de suma importância. Colou o ouvido na parede: eram ruídos, cochichos tímidos que se ouvia. Não compreendia o diálogo pela má formação das frases, que se perdiam no intervalo entre sua escuta e a fala de fora. Andou invariavelmente pelo cerco, pesando os passos, calando os pensamentos. Sua angústia atingira um novo nível: o tédio. O tempo ocioso no cerco permitia-lhe reunir todos os motivos que ainda tinha para buscar a saída, e todos os motivos que a saída a incitava viver.
Marielle calculava sua falta no mundo. Não reduzia, como toda a gente, seu ser à magnitude dos números, antes sabia do extenso e profundo lugar que ocupava. Desdobrava-se em outro, outra, para sentir sua própria perda, sua própria morte. Ao outro era concedido seu espaço, e sua presença se firmava impreterivelmente nisso. De repente, rompendo pensamentos, um barulho de fora. Quem é? Sem resposta. Marielle salta, investiga e se debruça com calma sobre o pau e a pedra. Eram muitas. Perscruta e a imagem se faz: botas pesadas, de couro e preta, uniforme camuflado com restos de barro e uma boina desajustada na cabeça, pendendo para um lado que não era possível identificar o rosto daquele homem. Marielle retoma estupefata sua antiga posição. Os barulhos de fora aumentavam, progressivamente, e Marielle com pernas e braços se arrastava para trás, balbuciando palavras. Do absoluto escuro ia se abrindo rente sua visão uma luz, nisso as vozes também aumentavam.
As vozes riam, e faziam tremer os pensamentos de Marielle, que chacoalhados deixavam-na ainda mais desesperada, tomada pela incerteza. Já estava dias ali e esse era seu primeiro contato com o exterior, não imaginava que pudesse ser tão grotesco. Iam rompendo os paus e as pedras, uma a uma, jogando-as para longe, via-se cada vez mais uniformes dentro da performance. As próximas decisões de Marielle cabiam apenas no limite do cerco, o que fez com que decidisse a paralisia. Não por redenção, ou porque estaria conformada ao porvir, mas por enfrentamento: ali parada, estática, encarando as botas chutarem os paus, as pedras serem arremessadas, os risos invadirem seu nome, sua identidade. Sentada no chão esperou, reformulando-se por dentro e desmistificando o futuro, se recompôs a um grau de neutralidade. Marielle resistiu de mãos fechadas, cravadas ao ponto de permitir sangrar a si mesma, e não pelo cercado daqueles.
Estava no fim, o cercado ia desmoronando e os rostos e as vozes exteriores ficavam reconhecidos e estampados no olhar de Marielle. Seu rosto suado abria fronteiras para que escorresse as lágrimas, movediças na pele negra. Era a visão última, quando as botas ringiram e um dos homens sacou uma arma e a fuzilou. Seu rosto virava retalhos e esparramava-se agora sobre seu sangue. O espaço da morte era esse extremo que encontrava-se Marielle, junto dela vários outros, outras, que encontravam-se no cerco, sucumbiram. Ainda que a antiga escuridão repelisse seus desejos, era claramente o lugar efetivo de Marielle.